Controverso, fascinante, denso e paradoxal
Prof. Pedro M. da Cruz.
A serpente é, de fato, um animal fascinante. Suas múltiplas características impressionam a sensibilidade dos seres humanos. Egípcios, gregos, romanos, druidas, indianos, chineses... viram-se seduzidos por seus aspectos variados. Nem mesmo o Redentor se furtou a tecer comentários sobre este réptil capcioso, pois ordenou a seus discípulos que fossem prudentes como ele, desde que guardassem a inocência que lhes era devida.[1]
Ela é um tipo hábil, silencioso e discreto; ao rastejar sinuosa e lentamente pelo chão, somos quase levados a nos esquecer de sua incrível capacidade de ataque, tão rápida e certeira quanto um raio. Imprevisível, dissimulada e, muitas vezes, mortal, tornou-se também um símbolo da malícia, assim como da tentação e do próprio Satanás.[2] No Egito, por exemplo, Apófis, monstro do caos, senhor dos infernos, era representado como uma serpente; e, a própria Tradição cristã a tomou, na maior parte das vezes, como um signo das forças do mal.
Animal de sangue frio, o que nos dá - já de entrada - uma impressão de horror a qualquer sentimentalismo malsão, é também, para muitos, arquétipo da sabedoria e da sagacidade. Por ser seu habitat subterrâneo sempre sugeriu também a idéia de conhecimento a ser revelado; e houve, inclusive, quem não deixasse de ver na sua ausência de pálpebras móveis, que a faz dormir de olhos abertos, um modelo da vigilância, bom ânimo e atenção perfeita.
Como se pode perceber é grande a riqueza de símbolos que se formou a partir da figura da Serpente; poderíamos citar muitos outros como, por exemplo, o símbolo da imortalidade, sugerida pela mudança periódica de pele, ou mesmo o símbolo da cura, que se depreende facilmente do uso terapêutico que se pode fazer de seu veneno, para não citarmos o da fecundidade, ligada ao formato fálico de seu corpo, tão cara ao paganismo, entre outros...
Finalmente, a mais gloriosa comparação que se fez desta criatura controversa! Quem não se recordará que a própria Escritura Sagrada a tomou por prefigura de Nosso Senhor Jesus Cristo? De fato, está escrito: “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o filho do homem, para que todo aquele que nele crer tenha a vida eterna.” [3] Ora, perante tão extraordinária comparação tudo o que foi dito acima queda, de certo modo, ofuscado. Cristo é a nova Serpente! Completamente oposta àquela das origens. Ele, no madeiro da Cruz, demonstrou a fecundidade infinita do amor divino. Com toda sabedoria e astúcia sobrenaturais, arranca os homens do pecado, cura seu coração ferido, e lhes concede a graça da Bem-aventurança eterna.
E, para terminarmos com chave de ouro esta nossa singela reflexão, perguntemo-nos com toda sinceridade: quem seria capaz de afirmar que não vê na Serpente de bronze apresentada por Moisés no deserto, além da prefigura do Salvador, uma representação discreta da Virgem Maria? De fato, Nossa Senhora, por participar de modo singular do poder de intercessão de seu filho, é apresentada por Deus, com toda autoridade, perante os olhares compungidos de seus servos, a fim de que mirando-a conservem a vida. Ora, é bem possível que seja também por isso que o Apocalipse nos afirme que à mulher fora preparado um retiro no deserto[4]... Não querendo forçar de modo abrupto alguma interpretação, fiquemos por aqui, porém, suplicando insistentemente à Virgem abrasadora: Ora pro nobis, Sancta Dei Génitrix!
[1] Conf. Mat. 10,16
[2] Conf. Gên. 3,1-14; Apo. 12,9
[3] Conf. João 3,14-15
[4] Conf. Apo. 12, 6
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