De São Policarpo, bispo e mártir.
Caminhando êste santíssimo prelado com um seu diácono, por nome Camério, agasalhou-se em certa estalagem; e já alta noite o seu anjo o acordou, avisando-o que se saísse logo, porque a casa havia de cair. Acordou êle também ao companheiro; porém êste, como estava cansado do trabalho da jornada, recusava deixar o sono, e lhe disse: Padre, creio em Deus que, enquanto vós aqui estais, não há de cair a casa; deixemo-nos estar. Respondeu o santo: Também eu creio em Deus; mas não creio nestas paredes: saiamo-nos depressa. - Apenas tinham pôsto o pé fora, quando o edifício se veio abaixo.
REFLEXÃO E DOUTRINA
Camério queria cama, e dormir mais um pouco sôbre os merecimentos do companheiro, e que o aviso do céu não fôsse tão madrugador. Era o mesmo que dizer: A minha preguiça pega de mim, e eu de vós: Vós santo, tendo mão em Deus, e Deus tenha mão na casa; tempo tem esta de cair, depois que caírem as estrêlas, e se levantar o sol; tempo tem de cair, depois que eu arrecadar o de dormir. Bem sei que o sono é imagem da morte, mas eu tomara escapar do original, sem me desabraçar da imagem; pela manhã terei os olhos mais despegados para ver a maravilha. Grande é o benefício de não caírem os telhados sôbre mim; porém não é pequena a pensão de me levantar eu dos colchões. Ora, padre, creio em Deus, que, enquanto vós aqui estais, não há de cair a casa. - Dêste modo lhe subministra confiança falsa a sua preguiça verdadeira. Bem disse Valério Máximo que o espírito humano, impelido da temeridade, não sabia avaliar nem os perigos próprios nem as ações alheias: Temeritatis impulsu hominum mentes concussae, nec sua pericula respicere, nec aliena facta justa aestimatione prosequi valent (1).
Disse o santo: Também eu creio em Deus; porém não creio nessas paredes. - Não pareça ao leitor que falta no mundo gente que crê ou creu em paredes. No sentir do Apóstolo, e de São Gregório Magno, os hipócritas são paredes; e, ainda mal, que tantos crêem nos hipócritas (2). Os judeus cercados por Tito em Jerusalém, por muito que êste os rogou se entregassem a partido, porque de outro modo todos haviam de parecer, ou dentro, à espada da fome cruel, ou fora, à fome da espada vingativa, nunca se quiseram render, e a causa desta pertinácia foi o muito que criaram nas paredes do seu Templo, persuadidos a que não havia de permitir Deus que padecessem ruína ou incêndio. Os setenta idólatras que Deus mostrou ao profeta Ezequiel, estavam todos diante de uma parede pintada com as formas de vários animais e sevandijas; e tinham nas mãos turíbulos com que incensavam esta parede, na qual criam (3). A letra do Testamento Velho não foi outra coisa que uma parede, detrás da qual estava como escondido o Messias, dando-se a conhecer sòmente aos profetas e sábios por alguns resquícios de revelação de seus ministérios, ou da interpretação das Escrituras (4). E só nesta parede crêem e ainda esperam os israelitas; esta - como diz o profeta Isaías (5), e expõe entendendo o seu sentido. Nesta - como diz o profeta Amós (6) - se encostam totalmente, e dela sai a cobra da infidelidade que os morde. Finalmente, as igrejas dos hereges, onde não há ver cruz, nem imagens sagradas, nem altares, nem missas, nem outros divinos ofícios, que são senão sòmente paredes? E nestas paredes crêem êles, nestas confiam que vão a salvamento. E nenhuma destas paredes creiamos, porque tôdas ou já caíram ou hão de cair.
Note - se quanto valeu a Camério a companhia de São Policarpo. É Deus tão pio e amigo de não puxar pela espada da sua ira que, por amor de algum servo seu, costuma perdoar não só a outros menos justos, senão ainda a muitos pecadores. A companhia de São Paulo valeu a vida duzentos e setenta e seis pessoas, que com êle navegaram, e sem êle certamente pereceriam: Donavit tibi Deus omnes qui navigant tecum (7). - A companhia de Josafá, rei de Judá, valeu a outros dois reis, que estavam com êle em campanha, para não morrerem à sêde, êles, e todos seus exércitos: Si non vultum Josaphat erubescerem, non attendissem quidem (8). - Por dez justos que houve na Pentápole vinha Deus em perdoar-lhe: Non delebo propter decem (9). - São os santos na Igreja Católica trigo bom no campo de Cristo: o misturar-se com êle a cizânia lhe aproveita para não ser logo arrancada: Sinite utraque crescere usque ad messem (10). - Do louro dizem que vale contra os raios; por isso o imperador Tibério nunca deixava de andar coroado dêle (11); muito mais valerão contra a ira do Onipotente os laureados pela vitória de si mesmos. Quando alguém se salvava de algum perigo evidente, lhe diziam por adágio: Trazeis bordão de louro. - Quem acompanha com o varão amigo de Deus, leva bordão de louro, que o livra de muitos casos infelizes. Chagar-se aos bons é ditame prudentíssimo: só êles sabem manter as leis da boa amizade: E a boa amizade - como gravemente disse Cassiodoro (12) - para os ricos serve de glória, para os pobres de renda, para os desterrados de pátria, para os fracos de esfôrço, para os enfermos de medicina, e até para os mortos de vida. - Não parece que pode haver melhor símil para intimar o quanto pode uma boa companhia que o da água misturada com vinho no cálice que se consagra. Porque desta mistura lhe vem a nobreza, e - para o dizermos assim - a ventura de se converter em sangue verdadeiro de Cristo, o que é verdade ainda quando a água se não tinha convertido já em vinho ao tempo da consagração, se seguirmos a sentença dos cardeais Alano, Barônio, Lugo e Toledo, que parece ser de muitos santos padres antigos, e é de graves teólogos modernos (13). E eis aqui a altura a que subiu a criatura da água, só porque acompanhou com a do vinho, matéria dêste cálice do Novo e Eterno Testamento. Por isso os companheiros dos santos patriarcas das sagradas religiões ordinàriamente também foram santos: como se vê em Paulo, o simples, companheiro de Santo Antão Abade; Geraldo, companheiro de São Bernardo; Mauro, companheiro de São Bento; frei Leão e frei Egídio, companheiros de São Francisco; Antão Martins, companheiro de São João de Deus; Ana de São Bartolomeu, companheira de Santa Teresa; e outros muitos exemplos. Oh! Quantos espíritos, frouxos e frios como água, se tornariam fortes e generosos como vinho, se acompanhassem com outros, que o são, no fervor e alegria com que servem a Deus!
***
Notas:
1. Dictorum Memorabilium, lib. 9, cap. 8.
2. Percutiet te Deus, paries dealbate: Deus te ferirá a ti, parede branqueada (At 23,3).
- Greg., relatus in c. Nisi bella, 23, q. I.
3. Éz 8, 10s.
4. En ipse stat post parietem nostrum, respiciens per fenestras: Ei-lo aí está pôsto por detrás da nossa parede, olhando pelas janelas (Cânt 2,9).
5. Palpavimus sicut caeci parietem, et quasi absque oculos attrectavimus: Andamos como cegos apalpando as paredes, e, como senão tivéssemos olhos, fomos pelo tacto (Is 59,10).
6. Quomodo si... innitatur manu sua super parietem, et mordeat eum coluber: Como se um homem... segurando-se com a sua mão à parede, o mordesse então uma cobra (Am 5,19).
7. Deus te há dado todos os que navegam contigo (At 27,24).
8. Se não fôsse por respeitar a pessoa de Josafá, eu sem dúvida não atenderia ( 4 Rs 3, 14)
9. Eu a não destruirei por amor dos dez (Gên 18,32).
10. Deixai crescer uma e outra coisa até à ceifa (Mt 13, 30).
11. Sueton. In ejus vita.
12. In proemio lib. De Amicitia: Amicitia est divitibus pro gloria, pauperibus pro censu, exuribus pro patria, imbecillibus pro virtude, pro medicina aegrotis, mortuis pro vita.
13. Cyprian., Hieron., Ambros., Pascas., Justin., M. Iraenaeus, quos citat et sequitur Rhoad., disp. I de Euchar., q. 2, § 3, Conink., Pasqualig., Salmer., et alii.
***
- Dados da Obra -
Obras Completas - Padre Manuel Bernardes.
Editora das Américas.
Volume IV
Matéria contida neste volume:
NOVA FLORESTA
Nova Floresta - Tomo IV
Nihil Obstat - Padre Antônio Charbel. S.D.B
Imprimatur - São Paulo, 10 de Julho de 1959
† Paulo Rolim Loureiro - Bispo Auxiliar e Vigário Geral
Páginas: 301 a 305
Título V - Confiança em Deus
Nenhum comentário:
Postar um comentário
- Evite postar comentários anônimos.
- Evite postar comentários em "caixa alta".
- Ofensas gratuitas serão excluídas.