segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Virtudes contraditórias? - B. Bartmann

  JOANADARC

S. Joana D´Arc: harmonia entre o amor e o ódio santo

 

 

Leitura. - Harmonia das perfeições aparentemente opostas da vida de graça. - “A vida dos santos é uma reposta prática ao agnosticismo, que declara inconciliáveis os divinos atributos, pois ela é já nesta terra, a conciliação daquelas perfeições que mais parecem opostas. A graça santificante, de fato, faz-nos participantes da Divindade como tal, ao passo que pela natureza, nos semelhamos a Deus só pelas perfeições comuns de ser, de vida, de inteligência etc. Daqui a razão porque nossa vida sobrenatural deve chegar mediante uma purificação progressiva (vida purgativa) não sòmente ao exercício habitual das diversas virtudes sob a luz da fé (vida iluminativa), mas à fusão das virtudes aparentemente menos conciliáveis e à união íntima com a fonte mesma da santidade (via unitiva). A purificação moral, que destrói em nós todo germe de desordem, corresponde à purificação metafísica que liberta as perfeições absolutas de tôda imperfeição; e como é impossível conceber-se a identificação dos atributos divinos, quando se esquece do os purificar de tôda modalidade imperfeita, assim é impossível efetuar-se, sem mortificação, a verdadeira conexão e harmonia das virtudes na sabedoria e no amor de Deus. A mortificação, aliás, não basta, são ainda necessárias as purificações passivas, obra profundíssima do Espírito Santo em nós.

Na nossa vida sobrenatural há, por isso, e deve haver cada vez mais, certa identificação do conhecimento como o amor, especialmente na contemplação que nos une a Deus: simples olhar pleno de amor sobrenatural (S. th. I-II, 180 aa. 1 e 6). Para se conhecer a Deus de tal modo necessário se faz amá-lo, e todos os que o amam, conhecem-no assim, pelo menos em certos momentos: Carissimi, diligamus nos invicem, quia caritas ex Deo est et omnis qui diligit, ex Deo natus est, et cognoscit Deum. Qui non diligit, non novit Deum, quoniam, Deus caritas est (I Jo 4, 7-8). Não é justaposição da luz à vida, é luz de vida. Ego sum lux mundi; qui sequitur me non ambulat in tenebris, sed habebit lumen vitae ( Jo 8,12) e esta luz de vida promana da vida por essência que é luz: In ipso vita erat, et vita era lux hominum (Jo 1,4).

Como o progredir desta vida sobrenatural, como se vê na alma dos santos, as perfeições que monos conciliáveis parecem unem-se e com isso longe de se destruírem fortalecem-se cada vez mais. Desta forma, o conhecimento e o amor, especulação e prática, ou melhor, a contemplação e a ação compenetram-se cada vez mais ìntimamente. Por isso considera Santo Tomás a vida ativa e a vida puramente contemplativa menos perfeitas que a vida apostólica que une ambas. A exemplo de Jesus Cristo e dos seus discípulos, cumpre seja o apóstolo um contemplativo que oferece aos outros sua contemplação para os salvar. A contemplação deve ser o ponto culminante de sua vida; e em vez de obstacularizar sua atividade apostólica, dever ser-lhe a fonte. Se o apóstolo não se tiver elevado à contemplação, pelo menos em certa medida, sua palavra fica estéril, prega as realidades divinas de maneira muito humana, dá a letra, não o espírito da palavra de Deus. Privado do santo entusiasmo das coisas eternas fica prêso às idéias do momento, em vez de levar as almas ao amor de Deus, procura uma glória vã. A unidade não se fêz no alto, na harmonia da natureza com a graça, mas em baixo, na confusão. Considere-se o apostolado de um S. Domingos, de um S. Vicente Ferrer; que mais íntima unidade de contemplação e de ação pode haver? Com o progresso da vida sobrenatural, na contemplação mesma, cada vez mais concordam entre si a inefabilidade e a certeza, a unidade de vistas e a infinita variedade das aplicações.

Essas oposições ressaltam de modo especial na fé, que é a um só tempo sobrenatural por seu motivo e racional pelos sinais que confirmam a palavra de Deus; obscura e contudo, absolutamente certa; imutável e no entanto livre; contemplativa e praticíssima; guinda-se até os mais sublimes mistérios de Deus e desce aos menores particulares da nossa vida.

Guardada a proporção, dá-se o mesmo com a ciência da fé. A teologia dogmática, moral e mística, são uma única e mesma ciência eminente, “participação da de Deus e dos bem-aventurados” (S. th. I, 1 aa, 2 e 4). A doutrina sagrada trata, na obscuridade da fé, do mesmo objeto contemplativo no céu pelos santos: Deus, as obras que dêle procedem e o regresso das criaturas a Êle. O progresso da teologia deve, portanto, ser mais trabalho de unificação que de extensão; a descoberta de novos documentos e as novas aplicações, embora úteis, fica muito secundária; o importante é aproximarmo-nos do espírito da mesma ciência dos santos, compreendermos cada vez melhor a conexão dos mistérios revelados entre si e, sobretudo, o mistério cuja visão constitui nosso último fim. A teologia tende essencialmente à contemplação, ou deixa de ser uma “participação da ciência de Deus, e dos bem-aventurados” para se tornar uma árida coleção de textos, na qual os mistérios revelados ficam dissociados e onde o Sacramento da Penitência assume a mesma importância que a SS. Trindade.

O verdadeiro progresso não olha para o futuro, mas projeta seu olhar para a eternidade, onde se realiza a unificação do saber. Sob êste aspecto superior, S. Tomás de Aquino, no século XIII, sobrepuja as sumidades de hoje, pois seu sentido teológico foi mais puro e estêve mais próximo da ciência de Deus.

O progresso da ação deve trilhar idêntica via e fazer-se especialmente objetivando a qualidade e a unidade, que consiste em se unir cada vez mais o amor de Deus e o do próximo, com o ódio santo do mal; a esperança mais confiante, com o temor filial; a firmeza da justiça com a doçura da misericórdia; a simplicidade da pomba com a prudência da serpente; a mais profunda humildade com a dignidade tôda sobrenatural, que proíbe inclinar-se diante das opiniões do mundo, sempre que opostas ao espírito de Deus. Tôda virtude moral é um justo meio terreno racional entre os excessos e os defeitos da paixão. Tôdas estas harmonias espirituais foram de fato realizadas pela santidade eSLG1minente da Virgem e dos Santos...

A mesma harmonia dos pontos mais difíceis de se  conciliarem, encontramos na Igreja, na qual a caridade mais compassiva e a intransigência doutrinal unem-se no ardor da mesma palpitação, que é o zêlo pela glória de Deus e pela salvação das almas; sabendo ela que não pode fazer o bem sem combater o mal, que não pode evangelizar sem lutar contra a heresia. A misericórdia e a firmeza doutrinal não podem subsistir a não ser unindo-se; pois uma desvinculada da outra, morrem e deixam apenas dois cadáveres: o liberalismo humanitário com sua falsa serenidade e fanatismo com seu falso zêlo. Já se disse: “A Igreja é intransigente nos princípios, porque crê; é tolerante na prática porque ama. Os inimigos da Igreja, ao invés, são tolerantes nos princípios porque não crêem, intransigentes na prática porque não amam”. De um lado a teoria opõe-se à prática, de outro, penetra-a e tudo dispõe com fôrça e suavidade.

A Igreja na terra é essencialmente militante e pacífica; a paz reina no interior do país, a guerra, nas fronteiras. Sòmente os santos sabem exprimir o sentido sobrenatural da batalha que cumpre travar contra a carne, o espírito do mundo e o espírito do mal. Quantas vêzes mostraram a Igreja purificada “pelo fogo das grandes tribulações, trazendo no coração o ouro do amor, o incenso da oração, no espírito e no corpo, a mirra da mortificação! Ela, dizem, é para os pobres e para os pequenos o bom odor de Cristo, um odor de morte para os grandes e soberbos do mundo. Guiada pelo Espírito Santo, a nada se apega, de nada se admira, por nada sente pena; derrama a chuva da palavra divina e da vida eterna; ensina a via estreita de Deus na pura verdade, segundo o Santo Evangelho e não, segundo as máximas do mundo, sem temer mortal algum, por mais poderoso seja; ela maneja a espada de dois gumes da palavra de Deus” (Grignon de Montfort) com a qual distingue o verdadeiro do falso, o bem do mal, e leva às almas a liberdade e à salvação. Seus inimigos mais perspicazes, como Proudhon, no seu fanatismo antireligioso, experimentam a uma sinistra alegria em o proclamar: “A Revolução crê na humanidade; a Igreja crê em Deus, crê nêle mais que qualquer seita, ela é a mais pura, a mais completa, a mais esplêndida manifestação da Essência divina, e sòmente ela sabe adorá-la”.

“A vida de Cristo na sua Igreja e em seus santos é a mais sublime manifestação da harmonia das perfeições divinas que menos parecem poder-se conciliar entre si”. Garrigou-Lagrange, Le divine perfezioni, Libr. F. Ferrari, Roma, 1923, pp. 338-345.

 

 

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-Dados da obra-
Livro: Teologia Dogmática Vol. I - Revelação e fé - Deus - A Criação
Autor:Bernardo Bartmann
Terceira Seção: Os atributos de Deus
Capítulo primeiro: Os atributos de Deus em geral
Leitura: Harmonia das perfeições aparentemente opostas da vida de graça
Páginas:188-190
2° Impressão - REIMPRIMATUR São Paulo, 19 de setembro de 1963
Mons. J. Lafayette Álvares
Vigário Geral
Edições Paulinas
NIHIL OBSTAT São Paulo, 25 de janeiro de 1962
Pe. João Roata, S.S.P.
Censor

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