O Dominador dos Sentidos
Se os olhos eram os servidores mais buliçosos, os restantes quatro sentidos não eram menos rebeldes.
O ouvido, por exemplo, com os seus dois pequenos pajens semelhantes a um funil levá-lo-iam de bom gôsto para as tagarelices.
As duas orelhas rosadas, com aparência de flôres delicadas eram duas curiosas incorrigíveis. Puxavam-no por todos os lados bisbilhotando:
- Luís, escuta aqui que boato atraente; escuta lá que litígio interessante!
A todo instante êles queriam parar, aguçando-se ávidos e atentos. Mas, Luís que era um jovem honrado e nobre de verdade, ordenava
- Continuai o vosso caminho; não deveis parar a cada porta como mendigos desprezíveis.
Os ouvidos gostavam de recolher tôdas as maledicências.
- Deixai aquela sujeira, - dizia Luís. - Vós sois os sevos da minha alma. Não permito que vos contamineis com palavras feias.
Pior ainda se lhe traziam palavras torpes. Luís nem tomava conhecimento. Era um surdo voluntário. Por isso os dois pajens logo compreenderam que com um dono assim só deviam escutar palavras boas e conversas elevadas.
Depois havia o olfato. Aqui a luta foi diuturna. Aquêle servo rebelava-se aos maus cheiros. Quando Luís entrava nos hospitais para assistir os doentes, seu narizinho delicado, logo entrando, recalcitrava. Dizia:
- Não prossigo. Não agüento mais. - Foi necessária tôda a autoridade do jovem descendente de capitães. Êle impôs ao nariz suportar os cheiros mais desagradáveis. Obrigou-o a cuidar de cancerosos, aproximou-se a roupa mais nojenta.
- Coragem, - dizia-lhe, exortando-o a ser forte. - Também os soldados frente ao perigo, sentem a tentação de fugir; e tu, diante de um cheiro repugnante queres recuar? Ânimo, meu servo. Lembra-te de que carregas as minhas insígnias. Não sejas covarde. Avança entre os maus cheiros, como o bom soldado avança entre as fileiras do inimigo!
E também o olfato acabou por obedecer ao dono e senhor.
Da mesma maneira Luís fêz com que o gôsto lhe obedecesse.
Quando na mesa aparecia alguma comida que não apreciava, o gôsto fechava a bôca, pegava a língua contra o paladar, gritando:
-Não gosto!
Luís sorria.
-Não gostas? Espera um pouco te vou satisfazer.
Fazia então horríveis misturas. O gôsto procurava pôr em revolução também o estômago. Chamava em socorro e enjôo.
Luís, calmo, seguro de si, obrigava os dentes a se abrirem, despregava a língua do paladar, obrigava o servo teimoso a saborear devagarinho aquela comida repelente.
Assim também o gôsto se tornou submisso à vontade do dono. Vencer qualquer nojo e aceitou tôdas as comidas.
Mas o domínio maior de Luís se deu com o último e mais perigoso dos sentidos: o tacto.
Êste sentido está sempre presente e sempre à espreita. Mesmo quando estamos dormindo, o tacto está acordado. É possível fazer calar os outros sentidos, fechando os olhos, tapando os ouvidos, obstruindo o nariz, cerrando a bôca, mas o tacto é o mais difícil a ser dominado.
Êle se estende por tôda a superfície do corpo, e não é fácil se defender dêle, da ponta do mindinho ao tôpo dos cabelos. Não é fácil frustar tôdas as suas manhas.
E a manha, a traição do tacto, consiste em mudar em prazer ocioso o que é útil conhecimento. Tocando um objeto sabemos se é frio ou quente, duro ou macio, liso ou áspero.
Até aqui o tacto é um servidor correto e assaz útil, mas quando o toque se torna uma carícia demorada, quando a carícia transforma-se em prazer ocioso, quer dizer que o tacto atraiçoou, e o servidor operoso tornou-se servidor vicioso.
Luís conseguiu manter no ofício certo o mais perigoso dos sentidos. Nunca lhe permitiu se tornar vicioso. Guardou intacto o condor do seu corpo, nunca se entregando a uma ato impuro.
Vimos como desde a infância, êle prometera a Nossa Senhora ser igual a um lírio. O lírio é completamente branco, do fundo do cálice à ponta das pétalas. Luís alcançou ser cândido em todo o corpo, e essa foi uma das suas maiores vitórias.
Mas para explicar essa vitória é necessário ter presente que êle teve o cuidado de empregar todos os outros sentidos para a custódia do último e mais perigoso servidor.
Refreou os olhos para que o tato não fôsse excitado; deixou em paz os ouvidos para que o tacto não fôsse subornado; castigou o olfato para que o tato fôsse mortificado; castigou o gôsto para que o tacto fôsse humilhado.
E nisso mostrou-se estrategista mais esperto de que todos os seus antepassados comandantes.
O Marquês de Castiglione, seu pai, sabia que para vencer uma batalha era necessário vencer em todos os lados. Não adiantava vencer na extremidade esquerda, se havia derrota na direita. Era perigoso avançar no centro, quando se recuava aos lados.
De mesma forma, o jovem noviço da Companhia de Jesus compreendeu que não adiantava ser obedecido pela vista, se o ouvido dominasse; não adiantava subjugar o olfato, se o gôsto continuava rebelde. Era preciso vencer em tôda a linha, isto é, assenhorear em todos os sentidos, e a vitória final dessa batalha obtida sôbre todos os sentidos, chamava-se “pureza”!
Luís venceu, por isso foi puro. Mostrou-se mais valente do que os mais valentes capitães, mais arrojado de que os mais arrojados soldados, mais precavido do que os mais precavidos estrategistas.
Deus lhe deu a vitória na terra. E a vitória conseguida por Luís na terra foi a pureza.
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O Lírio dos Gonzaga
Autor: Piero Bargellini
Editora: Paulinas
Tradução: Pe. José Valsánia
Páginas: 77 - 84