Porque concorrendo n’elle todas as causas e razões de amor, o deixam para amar as cousas transitórias e mundanas.
Dizei-me, filhos de Adão, que loucura é a vossa, pois, estando em mim todos os bens que o Céo e a terra possuem, andais buscando bens nos charcos lodosos do mundo, e não na fonte pura, d’onde todos elles manam?
Por que razão são tantos, os que tão desassocegada e trabalhosamente buscam as sombras enganosas dos falsos bens d’esta vida, e tão poucos os que me buscam a mim, que sou o auctor e dador da verdadeira felicidade?
Muitos andam perdidos após a formosura das creaturas; mas porque, não havendo cousa alguma mais formosa do que eu, tão poucos são os que me buscam?
Outros estimam em muito a linhagem e a nobreza; e quem mais nobre do que eu, que tenho a Deus eterno por pae, e uma Virgem puríssima por mãe? Porque, pois, são tão poucos os que desejam unir-se commigo, e gozar d’este parentesco?
Sou o Imperador e Monarcha do céo e da terra: por que razão se envergonham os homens de ser meus criados e servidores?
Sou também mui rico, dadivoso, e liberal para quem a mim recorre, e desejo que todos me peçam; e com tudo isto poucos são os que de verdade me pedem!
Sou egualmente perfeita sabedoria do eterno Pae e com tudo isto apenas ha quem commigo se aconselhe?!
Sou a mesma formosura e resplendor de sua gloria, e ninguem d’ella se namora!
Sou fiel e verdadeiro amigo dos que me amam, aos quaes me dou a mim mesmo, e todas minhas cousas; mas quão poucos sãos os que procuram esta amizade!
Sou o caminho recto que vae ter á vida eterna; mas quão poucos são os que por elle querem andar!
Sou verdade eterna que não póde falhar, mas porque não quer a gente rude e ignorante fiar-se de minhas palavras? Porque desconfia de minhas promessas, sendo eu tão fiel em cumprir o que prometto?
Sou a mesma vida, e auctor d’ella; porque pois, fazem os mortaes tão pouco apreço de mim?
Sou fórma, invariável e certíssima regra de bem viver; e porque buscam os homens fora de mim outro modelo?
Sou a verdadeira saúde, e o perfeito deleite, sem mistura de dissabores; porque, pois, teem os homens tanto fastio de mim?
Sou a única paz e tranqüilidade das almas; e porque razão não lançais em mim todos os cuidados, que dilaceram vossos coraçãos?
Se as feras indômitas, os cruéis leões e dragões agradecem os benefícios; se as águias de delfins amam a quem os ama; se os cães reconhecem e afagam a quem lhes faz bem; porque razão tu, ó homem, mais fero que as mesmas feras, não amas a quem tanto te ama, a que te há feito tantos benefícios, a quem te creou, e dotou d’uma alma racional, a que com seu sangue morte affrontosa de cruz, e perda de sua vida livrou a tua da perdição eterna?
Se o boi conhece seu Senhor, e o torpe jumentinho a quem lhe dá de comer, por que razão só o homem me não conhece, sendo eu seu creador e libertador?
Só eu sou o compendio de todos os bens; porque, pois, os buscam os homens fora de mim?
Sou manso e humilde de coração, fácil de aplacar, e inclinado à misericórdia; e porque, miserável, te não acolhes a este porto de salvação?
Sou também justo Juiz, e rigoroso castigador dos maus; o porque não temes e tremes de offender-me?
Posso n’um momento arrancar-te do seio dos prazeres, chamar-te a juízo, e sepultar-te no inferno; e porque não temes este castigo?
Pelo que, homem perverso e menosprezador de Deus, se por tua maldade fores entregue á morte, a ti, e não a mim, deves pôr a culpa, pois por minha parte nenhuma cousa se omitiu para remédio teu. Porque, se tão grande caridade dadora de si mesma, se tão larga benignidade te não tem abrandado, se a esperança de tão grandes promessas não te ha movido, nem o terror espantoso de chammas do inferno te ha atemorizado, nem a vergonha se quer te ha refreado, e tens o coração mais duro que o ferro; que ha de fazer mais minha divina piedade? Que outros invenções e artes hei de buscar para abrandar tua dureza?
Salvar ao que não quer ser salvo, nem é de entendimento são, nem a piedade de meu Pae o consente!
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Fonte: livro "Manual do Christão", páginas 132, 133 e 134.