sexta-feira, 4 de março de 2011

Igreja, Razão e Verdade



“... tentamos explicar tudo o que a nós parece razoável, e mais ainda, necessário para o homem.” (Card. Joseph Ratzinger)

“Buscamos uma religião que não seja inventada, mas sim autêntica, e que, ao mesmo tempo, seja acorde com nossa razão.” (J. Ratzinger)

“... nossa religião é a continuação e a culminância das filosofias da época – e também uma superação das filosofias.” (Ratzinger)


Por Saulo Eleazer

Neste tempo atordoado, em que o subjetivismo pretende destronar a Verdade, poucas vozes levantam-se em defesa de Nosso Senhor. Os poucos que ousaram organizar-se à sombra do ideal cristão parecem desanimados perante a ousadia dos adversários...

Não podemos nos calar.

Nunca, jamais!

É preciso reafirmar, constantemente, os ideais da fé. Gritar bem alto os esplendores da Verdade. No céu, ouvir-se-ão aplausos angélicos. Na terra, homens serão incendiados pela bravura dos crentes. E, por fim, os “inimigos da cruz”, verão frustrados seus intentos.

O triunfo é inevitável, incerta é nossa participação no mesmo. Lutar por Cristo é tornar-nos, por sua graça, partícipes da vitória. Proclamemos, portanto, bem alto a Verdade, mesmo que ninguém nos escute.

Nosso coração se encheu de alegria ao “ver” a voz, quase solitária, do então Cardeal Ratzinger em defesa das verdades do cristianismo no texto que se segue. Possa a Santíssima Virgem Maria, por sua doce intercessão, tornar-nos dignos companheiros deste paladino da fé.   


***


A pretensão da Verdade posta em dúvida

“No inicio do terceiro milênio, e precisamente no âmbito de sua expansão original – Europa - o cristianismo se encontra imerso em uma profunda crise que é conseqüência da crise de sua pretensão da verdade. Essa crise tem uma dupla dimensão: em primeiro lugar, questiona-se cada vez mais se é realmente oportuno aplicar o conceito de verdade à religião; em outras palavras, se é dado aos homens conhecer a autêntica verdade sobre Deus e as questões divinas. Para o pensamento atual, o cristianismo de modo algum está mais bem situado que as demais religiões. Ao contrário: com sua pretensão da verdade parece estar especialmente cego diante do limite de nosso conhecimento do divino.
Todo este ceticismo frente à pretensão da verdade em matéria de religião se vê respaldado, ainda, pelas questões que a ciência moderna levantou sobre as origens e os conteúdos do cristianismo: com a teoria da evolução parece ter sido superada a doutrina da Criação; com os conhecimentos sobre a origem do homem, a doutrina do pecado original; a exegese crítica relativiza a figura de Jesus e questiona sua consciência de Filho; a origem da Igreja em Jesus parece duvidosa etc. O fundamento filosófico do cristianismo se mostra problemático após o ‘fim da metafísica’, e seus fundamentos históricos são postos em xeque por efeito dos métodos históricos modernos.
Por isso, também é fácil reduzir os conteúdos cristãos ao simbólico, não lhes atribuir maior veracidade que aos mitos da história das religiões, vê-los como uma forma de experiência religiosa que se deveria situar com humildade ao lado de outras. Ao que parece, assim considerado, poder-se-ia continuar sendo cristãos, e continuam sendo utilizadas as formas de expressão do cristianismo, cuja exigência se transformou radicalmente: a verdade, que era uma força  vinculadora e uma promessa segura, transforma-se em uma forma de expressão cultural do sentimento religioso geral que nos cabe por conta de nossa origem européia.”

“Em suas origens, como o cristianismo contemplou seu lugar no cosmos das religiões? O surpreendente é que, sem hesitar, Agostinho atribuiu ao cristianismo um posto no âmbito da ‘teologia física’, do racionalismo filosófico. Esse fato implica uma evidente continuidade dos primeiros teólogos do cristianismo – os apologistas do século II – com relação ao lugar que Paulo atribui ao cristão no primeiro capítulo da Carta aos romanos, que, por sua vez, se baseia na teologia da sabedoria do Antigo Testamento e, por meio dela, remonta ao escárnio dos deuses dos Salmos.
Sob essa perspectiva, o cristianismo tem seus precursores e sua preparação interna no racionalismo filosófico, não nas religiões. [1] Segundo Agostinho e a tradição bíblica, para ele decisiva, o cristianismo não se baseia nas imagens e idéias míticas, cuja justificação se encontra, afinal, em sua utilidade política, mas faz referência a esse aspecto divino que a análise racional da realidade pode perceber. Em outras palavras: Agostinho identifica o monoteísmo bíblico com as idéias filosóficas sobre o fundamento do mundo formadas em suas diversas variantes na filosofia antiga. A isso se faz referência quando, desde o sermão do Areópago de Paulo, o cristianismo se apresenta com o propósito de ser a religio vera. Assim, pois, a fé cristã não se baseia na poesia nem na política, essas duas grandes fontes da religião; baseia-se no conhecimento. Venera esse Ser que é o fundamento de tudo o que existe, o ‘Deus verdadeiro’. No cristianismo, o racionalismo se tornou religião e não é mais seu adversário. [2]
Partindo dessa premissa, como o cristianismo foi entendido como um triunfo da desmitologizaçâo, como um triunfo do conhecimento e, com isso, da verdade, devia ser considerado universal e levado a todos os povos; não como uma religião específica que ocupa o lugar de outras, ou como uma espécie de imperialismo religioso, mas como verdade que torna a aparência supérflua.”

“Justino, filósofo e mártir – falecido em 167 – pode ser considerado uma figura representativa dessa forma de chegar ao cristianismo como vera philosophia. Com sua conversão ao cristianismo, não renunciou a suas próprias convicções filosóficas, mas foi quando se tornou verdadeiramente um filósofo. A convicção de que o cristianismo era filosofia, a filosofia perfeita, ou seja, a filosofia que chega até a verdade, manteve-se vigente para além dos tempos dos Pais da Igreja. No século XIV, essa consideração é evidente na teologia bizantina de Nicolau Cabasilas. Certamente a filosofia não era entendida, então, como uma disciplina acadêmica puramente teórica, mas também, e acima de tudo, sob uma perspectiva prática, como arte de viver e morrer com probidade a que só se pode chegar à luz da verdade.”

O racionalismo pode se transformar em religião porque o mesmo Deus do racionalismo entrou na religião. O elemento que realmente exige fé, a palavra histórica de Deus, é a condição prévia para que a religião possa se voltar, por fim, para o Deus filosófico, que já não é um mero Deus filosófico e que não rejeita o conhecimento filosófico, mas que o assume.”

“A tentativa de dar de novo um sentido claro ao conceito de cristianismo como religio vera no meio dessa crise da humanidade deve se basear igualmente, por assim dizer, no reto agir (ortopráxis) e no reto crer (ortodoxia).”


(P.S. O negrito é nosso)

Referência Bibliográfica:

RATZINGER, Joseph; D`ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe? Trad.: Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009.





[1] Conferir no mesmo livro a seguinte citação: “... nós somos a continuação do pensamento humano que criticou as religiões, do pensamento que já havia encontrado uma pista de Deus, mas que somente com suas forças não podia identificá-lo realmente.” (Ratzinger) . RATZINGER, Joseph; D`ARCAIS, Paolo Flores. Deus existe? Trad.: Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009, pg.34.


[2] Conferir, também,  no mesmo livro: “São Paulo esta convencido de que a fé cristã apela à razão, mas também esta convencido de que vai além das coisas evidentes para a razão.” (Ratzinger) Pág. 33