segunda-feira, 17 de outubro de 2011

CRISTO NA ECONOMIA


Ideal de sociedade Cristã


O meu Pai trabalha continuamente e Eu também trabalho. Jô 5,17


É impossível falar de Economia nos últimos dois mil anos sem se referir a Jesus Cristo. A sua presença real fez-se sentir continuamente e afetou de forma decisiva toda a realidade. É por isso que, naturalmente, a consideração dos problemas econômicos também tem de levar em conta sua influência.

Mas a presença de Cristo é superior, sublime, divina. É por isso que tantas vezes ela escapa à nossa observação humana e terrena. Aqueles que puderam conhecer a figura visível de Cristo foram continuamente confundidos, desarmados, descoroçoados pela sua presença e pelas suas palavras. O espanto é a atitude mais freqüente nos Evangelhos. Desde a Anunciação – “Como pode ser? [1]” -, passando pelos milagres – “Quem é este?” [2] – até à Ressurreição – “Vede as minhas mãos e os meus pés: sou eu mesmo!” [3].
          
         Assim, quando falamos da influência do Senhor, na economia como em todas as outras coisas, temos de estar bem alerta para não cairmos no simplismo, na generalização, na interpretação imediata, errônea, terrena das palavras que Ele disse e das ações que praticou ao longo destes dois mil anos. Foi esse erro de perspectiva que ao longo destes séculos criou tantas heresias em tantos domínios, e também na economia.


A INFLUÊNCIA QUE O SENHOR NÃO QUIS TER


 A analise da influencia de Cristo na economia destes dois mil anos não pode deixar de começar com esta enorme perplexidade perante um ensino e atuação que não é deste mundo[4]. Por isso, a primeira coisa que vale a pena notar é que o Senhor não quis fazer, a influencia que Ele não quis ter.
          
          Um dos aspectos mais nítidos da presença de Cristo é Ele ter evitado cuidadosamente mudar o sistema social e econômico, reformar este mundo, transformar a sociedade. Repetidamente, Ele afastou interpretações das suas palavras e ações que fossem diretamente político-econômicas, e colocou-as noutro nível – porque o meu reino não é daqui. [5] Ele podia facilmente ter criado um partido ou força social, um governo, um sistema de regras comunitárias. Todos – discípulos, opositores, até simples curiosos – esperavam que Ele o fizesse.  Jesus, porém, sabendo que viriam buscá-lo para fazê-lo rei, refugiou-se sozinho na montanha[6]. Múltipla vez, Cristo, deste modo suave e elegante, afastou a interpretação imediata das suas ações e palavras.
          
         Quando O tentam envolver nestes assuntos, Ele escusa-Se delicadamente. Disse-lhes então alguém da multidão: “Mestre, diz a meu irmão que reparta comigo a herança.” Ele respondeu: “Homem, quem me estabeleceu como juiz ou árbitro da vossa partilha? [7].” Ao confrontar-se com autoridade, separa muito bem os níveis: “Daí, pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. [8]“.
           Cristo respeitou escrupulosamente a autoridade do sistema político-económico do seu tempo. Notou-lhes os defeitos, mas sempre Se recusou a entrar em esforços de reforma, em conspirações ou em projetos de revolução, até em reflexões especulativas. Essas realidades não passavam de simples meios para um fim sublime: “Eu digo-vos: fazei amigos e riquezas injustas, para que, no dia em que estas faltarem, eles vos recebam nas moradas eternas. [9]É indiscutível que a influência que Cristo quer ter é diferente: Aquele que vem do alto está acima de todos; o que é da terra é terrestre e fala como terrestre. Aquele que vem do céu dá testemunho do que viu e ouviu, mas ninguém acolhe o seu testemunho[10].
             
              Esta atitude foi bastante mal compreendida no seu tempo, por discípulos, opositores e simples curiosos. Muitos levaram a mal a falta de empenhamento de Cristo nas pequenas discussões políticas em que eles gostavam de se envolver.  A mesma atitude foi também muitas vezes tomada pela Igreja, na seqüência de seu Mestre. E também ela foi incompreendida ao longo dos séculos. “A missão da Igreja não é a intervenção direta no plano econômico, técnico, político ou do contributo material para o desenvolvimento, mas consiste essencialmente em oferecer aos povos não um “ter mais”, mas um “ser mais”, despertando as consciências com o Evangelho[11].

          Muitos são aqueles que, na Historia e, sobretudo no nosso tempo, insistem em fazer uma aplicação temporal e política dos ensinamentos, idéias e visões do Senhor. É comum apresentar Jesus como inspiração de modelos, sistemas, intervenções concretas. Cristo não é um pensador, não é um activista social, um político ou um analista. Por isso, compreendê-lo nesses registros, como é tão freqüente nos nossos dias, tem de gerar erros graves. As muitas interpretações políticas e econômicas da pessoa de Cristo são, simplesmente, embustes e enganos, que passam ao lado do propósito do Senhor.

A INFLUÊNCIA QUE O SENHOR QUIS TER

            O propósito de Cristo não é modificar a sociedade, mas ultrapassá-la completamente. Isso é evidente para quem O ouve. Por isso vos digo: não vos preocupeis com vossa vida, com o que haveis de comer, nem o corpo, com o que haveis de vestir. Não será a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que as vestes: [...] Buscai, pois, em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça. E todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. [12] Para compreender a influencia de Cristo é preciso compreender o seu objetivo.

            O seu propósito é salvar o mundo. O que ele quer é levar-nos a nascer do alto[13], a ser perfeitos como o Pai do Céu é perfeito[14]. Como o Pai me amou, assim também eu vos amei. Permanecei no meu amor. [...] Este é o meu mandamento: amai0vos uns aos outros como eu vos amei. [15]
                Este é o objetivo do Senhor. Esta é a influência que Lhe interessa.
Papa Bento XVI
       E esta é a origem da maior influência econômica que Cristo poderia ter. Apesar de manter sempre o respeito estrito pela autoridade político-econômica de seu tempo e de todos os tempos, o Senhor não deixou de ser revolucionário. E, embora o seu reino não seja daqui, Ele afirma claramente: Eu sou rei[16]. O seu objetivo não é mudar a sociedade. È muito mais profundo, vasto e exigente do que isso. E esse objetivo acaba por ser muito mais poderoso para mudar a sociedade.

          Para ter essa influencia e cumprir o seu objetivo, Cristo escolheu também um método e uma forma especial de influencia. A influência que Cristo quis ter é a influencia da sua Igreja, que é o seu corpo: Eu sou a videiro, vós as varas[17]. A presença visível de Cristo no mundo – e, portanto na economia – foi nestes dois mil anos a da Igreja, porque é assim que Ele quer. Tudo quanto ligardes na terra, será ligado no céu; e tudo o que desligardes na terra, será desligado no céu. [...] Porque onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei ali no meio deles[18].

            A Igreja de Cristo não é apenas uma Instituição que continua ao longo do tempo. A Igreja é Cristo. A Igreja de Cristo não é uma instituição, é um acontecimento concreto, sempre o mesmo, que se repete sucessivamente ao longo dos tempos. A Igreja de hoje, como em cada tempo, faz acontecer outra vez o que Cristo fez há 2000 anos. A Igreja faz presente hoje, na História, presente na nossa historia concreta, a pessoa concreta de Cristo. No século XXI, a Igreja não será mais nem menos visível que no século I ou no século XIII. Por isso, ao falar da Igreja de Jesus Cristo estamos a falar de algo que não tem comparação com mais nada.


A INFLUÊNCIA QUE O SENHOR TEM

Tal como Cristo, a sua Cabeça, a Igreja não é daqui. Mas ela vive cá, porque foi aqui que o Senhor a quis colocar. “Não peço que os tires do mundo, mas que os livres do mal” [19]. Destes dois fatos nasce o mistério da Igreja de Cristo. Virada continuamente para o Céu, a Igreja não deixa de atuar na sociedade terrena e aí ter vasta influência que o Senhor decidiu ter neste mundo.

Os exemplos do impacto da atuação eclesial sobre a economia são miríade. Qualquer cristão ou comunidade, ao defrontar-se como o problema de viver a vida neste mundo de olhos cravados no Céu, busca essa influência. Ao resolve-lo – na sua atuação econômica concreta, de trabalhador, consumidor, investidor, contribuinte – cria uma influência de Cristo na economia.

A História registra apenas alguns exemplos mais salientes. Logo em Jerusalém, os discípulos, esperando a vinda próxima do Senhor, criaram uma economia de gratuidade e partilha[20]. Esta opção eminentemente razoável se o fim do mundo fosse próximo, mostrou-se insustentável a longo prazo. Aliás, a perseguição se encarregou de desbaratar a primeira economia cristã[21]. Mais tarde, integrando-se no Império Romano, os discípulos, esforçando-se por caminhar para o reino dos Céus, iam mudando a economia imperial. O caso dos escravos[22] é uma boa demonstração dessa influencia.

S. Francisco e S. João
Ao longo dos séculos, os exemplos multiplicam-se. Olhando apenas para os mais evidentes, é possível seguir a história da economia paralela à da Igreja. Quando São Bento (480-547) foi para Montes Cassino, o seu objetivo era salvar a Igreja e determinar a nova forma medieval de evangelizar. Mas o seu mosteiro beneditino, que se iria espalhar pela Europa em sucessivas vagas, constituía mendicantes de São Francisco e São Domingos, no século XII, foram à resposta da videira de Cristo à nova realidade urbana da baixa Idade Média, influenciando decisivamente a sua vida e a sua economia. A teologia de São Tomás de Aquino e dos escolásticos lança as bases da futura ciência econômica.

Com a Idade Moderna nascia o capitalismo comercial, depois industrial. A Igreja esteve presente aí como sempre, procurando sempre ordena-lo para o Céu. As comunidades índias conhecidas por Reduções do Paraguai e destruídas em 1639 são dos exemplos mais notáveis de criatividade econômico-social, representando bem a originalidade ímpar dos jesuítas. As Misericórdias portuguesas, disseminadas por todo o império, e por isso, por todo o mundo, são também exemplos excelentes e ainda vivos de instituições que, viradas para a salvação das almas, tiveram profunda influência econômica.

Foi a Igreja que começou a segurança social, que hoje o Estado cria e regula. Ao longo de milênios, foi para a Igreja que se viraram os pobres e aflitos, até que o Estado percebeu que era bom fazer igual. O amor ao próximo, que a Igreja trouxe à luz do dia e pregou desde sempre, é hoje pregoado por partidos, organizações leis e discursos. A solidariedade, a igualdade, a luta contra a pobreza, a discriminação, o racismo são valores que a Igreja sempre defendeu e que o mundo só defende porque “copiou”.

Todos estes, e muitos outros, são exemplos eloqüentes da forma como os cristãos viveram a sua vocação divina no mundo que o Senhor veio salvar. “Pela força do Evangelho, ao longo dos séculos, os monges cultivaram as terras, os religiosos e as religiosas fundaram hospitais e asilos para os pobres, as confrarias, bem como homens e mulheres de todas as condições, empenharam-se a favor dos pobres e dos marginalizados, convencidos de que as palavras de cristo: Cada vez que fizestes estas coisas a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes” (Mt 25,40), não deviam permanecer um piedoso desejo, mas tornar-se um compromisso concreto de vida “[23].



FONTE: A Econômia de Deus, Págs 59 - 67. João César das Neves. Ed. Principia em co-edição com Grifo.

[1] Luc 1,34.
[2] Mat 8,27.
[3] Luc 24,39.
[4] Jô 18,36.
[5] Jô 18,36.
[6] Jô 6,15.
[7] Lc 12,13-14.
[8] Mt 22,21.
[9] Luc 16, 9.
[10] Jo 3, 31-32.
[11] Redemptoris Missio, 58.
[12] Mt 6, 25-33.
[13] Jo 3, 7.
[14] Mt 5, 48.
[15] Jo 15, 9-12.
[16] Jo 18, 37.
[17] Jo 15, 5.
[18] Mt 18,18-20.
[19] Jo 17,15
[20] At 2, 42-47.
[21] At 8, 1.
[22] 1 Tim 6,1-10; cf tb Fm 8-21.
[23] Centesimus Annus, 57.