sábado, 20 de fevereiro de 2010

Desobedecer, se necessário for!

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Theotokos (Mãe de Deus) de Vladimir
 
Prof. Pedro M. da Cruz.
 
Muitas vezes temos que desagradar aos homens para obedecer a Deus. Em situações banais, se assim podemos dizer, isso se dá de modo mais tranqüilo. De fato, quem não se afastaria dos companheiros, por exemplo, quando esses decidissem, democraticamente, que todos deveriam ver filmes pornográficos? Ou mesmo, quem não se colocaria abertamente contra o aborto numa roda de conversa, por ser esta questão evidentemente contrária à doutrina cristã? É óbvio que me refiro aqui a católicos verdadeiros, e não aos hipócritas que usam da religião como uma máscara, imaginando poder zombar de Deus. Esses, falam uma coisa e vivem outra; vão à Santa Missa por mera desculpa; não escutam uma única frase do sacerdote, e ainda se entretém em olhar freneticamente ao redor de si - até mesmo na sagrada fila da Comunhão - invejando os calçados e as roupas alheias, procurando maliciosamente sorrizinhos soltos... nem preciso me estender demais nesta questão, pois, os leitores estão fartos de ver estes tipinhos envergonhando a Igreja de Cristo.
Porém, a situação torna-se mais complicada quando somos obrigados a desobedecer a alguém que amamos com particular afeto; quando somos obrigados, pela consciência, a desobedecer aos pais, ao padre, ao Bispo... Ah, como dói no coração esta possibilidade. No entanto, uma vez que é o amor a Deus que o exige, deve-se estar pronto para tudo, até mesmo a desobedecer; e com alegria! Sim, porque a Deus deve-se amar sobre todas as coisas!
Disseram os santos apóstolos aos judeus que os haviam aprisionado: “Julgai vós mesmos se é justo diante do Senhor abedecermos a vós mais do que a Deus. Não podemos deixar de falar ...[1]. Realmente, se a justiça é a virtude de dar a cada um a parte que lhe cabe, jamais poderemos furtar-nos de entregar a Deus um coração submisso e filial, uma vida correta e santa. Esta é a parte que lhe é devida! Assim, amando a Deus de todo o coração, com toda alma e com todo o entendimento, cumpriremos com a Justiça.
O cânon 753 do Código de Direito Canônico, nos afirma que os Bispos - quer individualmente, quer reunidos nas Conferências ou em concílios particulares - embora não gozem de infalibilidade no ensinamento, são autênticos doutores e mestres dos fiéis a eles confiados, desde que se achem em comunhão com o Sumo Pontífice e os membros do Colégio episcopal. Neste caso, os cristãos estão obrigados a aderir, com religioso obséquio de espírito, a esse autêntico magistério de seus Bispos.
Mas, e quando um Bispo não estiver em comunhão com o Santo Padre, o Papa? E quando ele agir de forma contrária aos ensinamentos católicos? Estaremos obrigados a obedecer aos conselhos errôneos daquele que ensina a mentira e a engano? Claro que não! De igual maneira, um padre que pretendesse colocar-se acima do Magistério da Igreja, ensinando doutrinas condenáveis, não poderia jamais ser obedecido ao proclamar suas heresias.[2] Brademos, pois, com radicalidade: obediência pronta ao autêntico magistério de nossos pastores, e desobediência heróica a todos aqueles que ousarem se revoltar contra a Igreja! De fato, mesmo sendo oficial o ensinamento ordinário de cada Bispo, ele, no entanto, não é infalível. É possível que, um ou outro, venha a cair em erro, o que nos comprova a própria história do cristianismo.
Em circunstâncias tão dolorosas, o primeiro dever do fiel consiste em manter todo o respeito à pessoa sagrada do Pastor que lhe foi dado pela Providência, e acatar-lhe filialmente as ordens, em tudo quanto não obste à fidelidade direta e mais alta que se deve ao Vigário de Cristo.[3]
Exemplo de santa intolerância e radicalidade perante o erro, nos é narrado por Dom Mayer numa de suas Cartas Pastorais. Citando o caso de Nestório, um dos grandes heresiarcas da história, fala-nos que, no natal de 428 d.C, ano de sua eleição ao trono episcopal, aproveitando a grande multidão que se aglomerava na Basílica Catedral, ele – Nestório – anunciara terrível blasfêmia contra Nossa Senhora: “Maria – dizia ele em sua pregação - não deu a luz a Deus; seu filho não era senão um homem, instrumento da divindade”. Grande frêmito de horror percorreu os ouvintes, e um leigo, vejam bem, um leigo, Eusébio, levantando-se do meio da multidão protestou vivamente contra a impiedade do senhor Bispo. Sabemos que toda a História se alegra, até hoje, com a atitude heróica deste homem que soube defender a doutrina cristã. Que este exemplo de amor à verdade possa fecundar em nossa alma intenso ardor pela ortodoxia.
Finalmente, peçamos a Nossa Senhora a graça duma virtude heróica ao cumprirmos nosso dever apologético. Reconheçamos que, no tesouro da Revelação, há pontos essenciais cujo conhecimento necessário e guarda vigilante todo cristão deve possuir, em virtude de seu título de cristão, independente de pertencer ou não à hierarquia da Igreja. Os verdadeiros fiéis são aqueles que extraem de seu Batismo, nas circunstâncias mais urgentes, a força necessária na luta contra a falsidade e a mentira.

[1] Atos dos Apóstolos 4, 19-20
[2] Chama-se heresia a negação pertinaz após o Batismo, de qualquer verdade que se deva crer com fé divina e católica, ou a dúvida pertinaz a respeito dela.
[3] MAYER, D. Antônio de Castro. Por um cristianismo autêntico. Editora Vera Cruz, 1971. Pg. 115.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Sermão de Santo Antônio - Quarta Feira de Cinzas

Quarta-feira de Cinzas início do jejum

          1. Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos: “Quando jejuardes, não fiqueis tristes como os hipócritas que desfiguram o rosto para se fazer ver pelos homens que estão jejuando. Em verdade, eu vos digo: eles já receberam a sua recompensa. Tu, ao contrário, quando jejuares, urge a cabeça, lava o rosto para que os homens não vejam que estás jejuando, mas o teu Pai que está no secreto” (Mt 6,16-18).Neste trecho evangélico vamos tratar de dois assuntos: o jejum e a esmola.

I. O jejum

          2. “Quando jejuais”. Nesta primeira parte devem-se considerar quatro coisas: • o fingimento dos hipócritas; • a unção da cabeça; • o lavar o rosto; • a ocultação do bem. “Quando jejuais”. Lê-se na História Natural que com a saliva do homem em jejum resiste-se aos animais portadores de veneno; aliás, se uma cobra o ingere, morre (Plínio). Portanto, no homem em jejum existe verdadeiramente um grande remédio. Adão no paraíso terrestre, até que não comeu (jejum) do fruto proibido, permaneceu na inocência. Eis aí o remédio que mata a diabólica serpente e restitui o paraíso, perdido por culpa da gula. Por isso conta-se que Ester castigou seu corpo com jejuns para fazer cair o orgulhoso Aman e reconquistar aos judeus a benevolência do rei Assuero. Jejuai, portanto, se quiserdes conseguir estas duas coisas: a vitória sobre o diabo e a restituição da graça perdida. Mas “quando jejuais, não fiqueis tristes como os hipócritas”, isto é, não queirais ostentar o vosso jejum com a tristeza do rosto. Hipócrita diz-se também “dourado”, isto é, que tem a aparência do ouro mas, internamente, na consciência é barro. Este é o ídolo dos babilônios (Baal), de quem diz Daniel: “Não te enganes, ó rei, este ídolo, de fora é de bronze; dentro, porém, é só barro” (14,6). O bronze ressoa e pelo aspecto pode quase parecer ouro. Assim também o hipócrita ama o som do louvor e ostenta um pouquinho de santidade. O hipócrita é humilde no rosto, simples no vestir, submisso na voz, mas lobo em sua mente. Esta tristeza não é segundo Deus. É uma maneira estranha de buscar para si mesmo o louvor, essa de ostentar os sinais da tristeza. Os homens estão acostumados a alegrar-se quando ganham dinheiro. Mas trata-se de negócios diferentes: nestes últimos existe a vaidade, nos outros a falsidade. “Desfiguram-se (em latim exterminant) o rosto”, isto é, desfiguram-no para além dos limites da condição humana. Como se pode orgulhar da beleza das vestes, pode-se também fazê-lo da sua feiúra e falta de cor. Não se deve abandonar nem a uma sem cor exagerada e nem a uma excessiva vaidade: é bom estar na justa medida! “A fim de serem vistos pelos homens...” Qualquer coisa que fazem é apenas, aparência, pintado de um falso colorido. Fazem-no para aparecerem diferentes dos outros e serem chamados “super-homens”, até mesmo por causa da aviltação. “...jejuam”. O hipócrita jejua para receber louvor disso, o avarento para encher o bolso, o justo para agradar a Deus. “Em verdade eu vos digo: já receberam sua recompensa”. Eis a recompensa do prostíbulo, de que diz Moisés: “Não prostituas tua filha” (Lv 19,29). Filha representa as obras deles: colocam-nas no prostíbulo do mundo para receberem a recompensa do louvor. Seria loucura de quem vendesse como uma moeda de chumbo uma preciosa moeda de ouro. Na realidade vende por um preço muito barato algo de grande valor, aquele que faz o bem só para ser louvado pelos homens.

          3. “Tu, ao contrário, quando jejuas, unge a cabeça, lava o rosto”. Isto concorda com o que diz Zacarias. “Isto diz o Senhor dos exércitos: O jejum do quarto mês, do quinto, do sétimo e do décimo mês serão para a casa de Judá dias de alegria e felicidade, dias de grande festa” (Zc 8,11). A “casa de Judá” significa “que manifesta” ou “que louva” e representa os penitentes que manifestando e confessando seus pecados prestam louvor a Deus. Destes é e deve ser o jejum do quarto mês, porque jejuam (abstêm-se, de quatro coisas: soberba do diabo, impureza da alma, glória do mundo e injúria ao próximo. “Este é o jejum que eu amo”, diz o Senhor (Is 58,6). O jejum do quinto mês consiste em afastar os cinco sentidos dos pensamentos e prazeres ilícitos. O jejum do sétimo mês é a representação da cobiça terrena; com efeito como se lê que o sétimo dia não tem fim, assim também nem a cobiça do dinheiro chega ao fundo o suficiente. O jejum do décimo mês consiste em deixar de perseguir um fim mau. O final de cada número é o dez: quem quiser contar além tem que começar de novo do um. O Senhor se lamenta pela boca do profeta Malaquias: “Vós me roubais e ainda me dizeis: Em que coisa nós te roubamos? No dízimo e nas primícias (3,8), isto é, na finalidade má e no início de uma intenção perversa. Preste-se atenção, que o profeta coloca o dízimo antes das primícias, porque é sobretudo pela finalidade perversa que é condenada toda a obra precedente. Este jejum transforma-se para os penitentes em alegria da mente felicidade de amor divino e em esplêndida solenidade de celeste convivência. Isto quer dizer ungir a cabeça e lavar o rosto. Unge a cabeça aquele que em seu interior está cheio de alegria espiritual. Lava o rosto aquele que orna as suas obras com a honestidade da vida.

          4. O outro sentido. “Tu, ao contrário, quando jejuas...”. São muitos os que nesta Quaresma, jejuam e no entanto continuam em seus pecados. Estes não ungem a cabeça. Há um triplo unguento: o lenitivo (sedativo), o corrosivo e o “pungitivo”. O primeiro é produzido pelo pensamento da morte, o segundo pelo pensamento da presença do futuro Juiz e o terceiro pelo pensamento da geena. Há a cabeça coberta de furúnculo, verrugas e bentiligo. O furúnculo é uma pequena protuberância superficial cheia de podridão (pus); verruga é uma excrescência de carne supérflua, pelo que verruguento pode significar também “supérfluo”; o bentiligo é uma casca seca que deturpa a beleza. Nestas três doenças estão indicadas a soberba, a avareza e a luxúria obstinada. Tu, ó soberbo, recoloca diante dos olhos da tua mente a corrupção do teu corpo, a podridão e o fedor que terá. Onde estará, então, aquela tua soberba do coração, aquela tua ostentação de riquezas? Aí, então, não existirão mais as palavras cheias de vento, porque a bexiga murcha ao mínimo toque do alfinete. Estas verdades, meditadas no íntimo de cada um, ungem a cabeça feridenta, isto é, humilham a mente orgulhosa. Tu, ó avarento, lembra-te do último exame, onde haverá o Juiz justo, estará a carnífice pronto a atormentar, os demônios que acusam, a consciência que remorde. “Então a tua prata será jogada fora, o ouro se tornará sujeira, o teu ouro e a tua porta não poderão livrar-te do dia da ira do Senhor (Ez 7,19). Estas verdades, meditadas com atenção, destróem e tiram as verrugas do supérfluo e os dividem entre aqueles que nem o necessário têm. Por isso, quando jejuas, unge tua cabeça com este unguento, para que o que tiras de ti mesmo seja dado ao pobre. E tu, ó luxurioso, começa a pensar na geena do fogo inextinguível, onde haverá morte sem morrer, fim sem terminar, onde se procura mas não se encontra a morte, onde os condenados engolirão a língua e amaldiçoarão o Criador. Lenha daquele fogo serão as almas dos pecadores e o sopro da ira de Deus as incendiará. Diz Isaías: “Desde ontem”, isto é, desde toda a eternidade, “está preparado o Tofet”, a geena do fogo, “profundo e vasto. Fogo e muita lenha são seu alimento; o sopro do Senhor o acenderá como torrente de enxofre” (Is 30,33). Eis o unguento que punge, que penetra, capaz de sarar a mais obstinada luxúria. Como prego tira prego, assim estas verdades, meditadas assiduamente, são em grau de reprimir o estímulo da luxúria. Tu, portanto, quando jejuas, unge a cabeça com este unguento.

          5. “Lava o rosto”. As mulheres, quando querem sair em público, ficam na frente do espelho e se descobrirem alguma mancha no rosto, logo se limpam com água. Assim também tu, olha no espelho da tua consciência. E se encontrares alguma mancha de pecado, vai imediatamente à fonte da confissão e, quando na confissão se lava com lágrimas o rosto do corpo, também o rosto rosto da alma fica limpo e iluminado. Uma observação: as lágrimas são luminosas na escuridão, são quentes contra o frio, são salgadas contra o fedor do pecado. “Para que os homens não vejam que estás jejuando”. Faz jejum para os homens quem busca os aplausos deles. Faz jejum para Deus quem sofre por seu amor e partilha com os outros aquilo que tira de si mesmo. “Mas só o teu Pai que está no secreto”. Acrescente-se: o Pai está no secreto por causa da fé e recompensa aquilo que é feito em secreto. Portanto, deve-se jejuar somente lá onde ele vê. E é preciso que quem jejua, jejue de tal modo que agrade àquele que carrega no coração. Amém.

II. A esmola

          6. “Não acumuleis para vós tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde os ladrões assaltam e roubam” (Mt 6,19). A ferrugem corrói os metais, a traça corrói as roupas; o que se salva destes dois flagelos, os ladrões roubam. Com estas três expressões é condenada toda forma de avareza. Vejamos o significado moral das cinco palavras: terra, tesouros, ferrugem, traça e ladrões. A terra, assim chamada porque se seca (em latim “torret”) pela seca natural, representa a carne que é de tal modo sedenta que nunca diz: chega! Tesouros são os preciosos sentidos do corpo. A ferrugem, doença do ferro, assim chamada do verbo latim “eródere”, indica a impureza que, enquanto parece agradar, acaba com a beleza da alma e a corrói. A traça, assim chamada porque “segura”, indica o orgulho ou então a ira. Os ladrões (em latim “fures”, de furrus = obscuro), que trabalham na escuridão da noite, representam os demônios. Portanto, se carregamos alguma coisa na carne, escondemos os tesouros na terra, quer dizer: enquanto usamos os preciosos sentidos do corpo nos desejos terrenos ou da carne, a ferrugem; isto é, a impureza, os corrói. Além disso, o orgulho, a ira e demais vícios destróem a roupa dos bons costumes e, se sobrar ainda alguma coisa, os demônios a roubam, pois estão sempre interessados justamente nisso: roubar os bens espirituais. “Acumulai-vos de tesouros no céu”. Imenso tesouro é a esmola! Diz S. Lourenço: “As mãos dos pobres é que colocaram nos tesouros celestes as riquezas da Igreja!” Acumula tesouros no céu quem dá a Cristo e dá a Cristo quem dá ao pobre: Aquilo que fizestes a um destes mais pequeninos, o fizestes a mim! (Mt 25,40). “Esmola” é uma palavra grega que em latim se diz “misericórdia”. Por sua vez misericórdia significa “que irriga o mísero coração”. O homem irriga o pomar para colher os frutos. Tu, também, irriga o coração do pobre miserável através da esmola que é chamada água de Deus para obter seus frutos na vida eterna. Seja o pobre o teu céu! Coloca nele o teu tesouro, para que nele esteja sempre o teu coração. E isso, sobretudo agora, durante a santa Quaresma. Onde está o coração, aí também está o olho; e onde estão o coração e o olho, alí também está a inteligência, sobre a qual diz o salmo: “Feliz aquele que atende (“intelligit” = tem cuidado) ao mísero e ao pobre” (40,2). Daniel disse a Nabucodonosor: “Seja-te aceito, ó rei, o meu conselho: desconta teus pecados com a esmola, desconta tuas maldades com obras de misericórdia para com os pobres” (Dn 4,24). Muitos são os pecados, muitas são as maldades e por isso, muitas devem ser as esmolas e muitas as obras de misericórdia para com os pobres. Assim resgatado por elas da escravidão do pecado, possais voltar livres à pátria celeste. Vo-lo conceda Aquele que é bendito nos séculos. Amém.

          7. Lê-se no Livro dos Juízes que “Gedeão invadiu os acampamentos de Madiã com tochas, trombetas e ânforas” (7,16...) Isaías também diz: “Eis o Dominador, o Senhor dos exércitos quebrará com o terror a broca de barro; os de alta estatura serão cortados e os poderosos serão humilhados. O centro da selva será destruído a ferro e o Líbano cairá com seus altos cedros” (10,33-34). Vejamos o significado moral de Gedeão, tochas, trombeta e ânforas. Gedeão quer dizer “que gira no útero” e indica a pessoa penitente que, antes de se apresentar à confissão, deve girar no útero da sua consciência em que foi concebido e gerado o filho da vida ou da morte. Ela tem que pensar se já se confessou de todos os seus pecados; e se, depois de ter se confessado, recaiu nos mesmos pecados, e quantas vezes; porque neste caso foi muito, mas muito mesmo mais ingrato para com a graça de Deus. Se transcurou a confissão e por quanto tempo permaneceu em pecado sem confessar-se, e se, com pecado mortal, recebeu o corpo do Senhor. Portanto, a pessoa penitente, ouvindo o Senhor que diz “fazei penitência”, deve julgar a si mesma por todos os dias de sua vida, para ver se ela é “Israel”, isto é, alguém que vê a Deus. Todos os anos, durante a Quaresma, deve analisar a própria consciência, que é a casa de Deus e tudo aquilo que nela encontrar de nocivo ou supérfluo deve circuncidar na humildade da contrição; e deve também considerar o tempo passado, procurando com diligência aquilo que cometeu, omitiu e, depois disso, voltar sempre ao pensamento da morte que deve ter diante dos olhos, aliás, morar mesmo neste pensamento.

          8. A pessoa penitente, como atento explorador, feito assim o giro, deve logo acender a lâmpada que arde e ilumina: nela é indicado o coração contrito o qual, pelo fato de arder também ilumina. E eis o que pode fazer a verdadeira contrição. Quando o coração do pecador se acende com a graça do Espírito Santo, ele arde pela dor e ilumina pelo conhecimento de si mesmo; e então, a consciência, cheia de tribulações e remorsos, e a atormentada impureza é destruída porque seja interna que externamente a paz volta a florescer. E o esplendor do luxo deste mundo, a dissolutez carnal são destruidos desde a alma até a carne, porque tudo o que houver de imundo tanto na alma como no corpo, é queimado pelo fogo da contrição. Feliz aquele que queima e ilumina com esta lâmpada! Dela diz Jó: “lâmpada desprezada nos pensamentos dos ricos, preparada para o tempo estabelecido” (12,5). Os pensamentos dos ricos deste mundo são: guardar as coisas adquiridas e suar para adquirir mais ainda. Por isso, raramente ou nunca se encontra neles a verdadeira contrição. Eles desprezam-na porque fixam sua alma nas coisas passageiras. Com efeito, enquanto procuram com tanto ardor o prazer das coisas materiais, esquecem-se da vida da alma que é a contrição e assim caminham ao encontro da morte. Diz a História Natural que a caça dos cervos se faz assim: dois homens saem, um deles toca a trombeta e canta, o cervo segue o canto porque sente uma atração por ele. No entanto, o segundo homem dispara a flecha, atinge-o e o mata. Assim também acontece com a caça dos ricos. Os dois homens são o mundo e o diabo. O mundo, diante do rico, toca a trombeta e canta porque lhe mostra e promete os prazeres e as riquezas. E enquanto o rico estulto segue-o encantado, já que encontra prazer nessas coisas, é morto pelo diabo, levado à cozinha do inferno para ali ser fervido e assado.

          9. Eis, porém, que chega o tempo da Quaresma, instituído pela Igreja para perdoar os pecados e salvar as almas: na Quaresma prepara-se a graça da contrição que agora está à porta espiritualmente e bate. Se quiseres abrir e acolhê-la ceará contigo e tu com ela. E aí, sim, começarás a tocar a trombeta de maneira maravilhosa. Trombeta é a confissão do pecador contrito. Feita a confissão, deve ser dada a satisfação ou penitência indicada na ruptura da ânfora ou do vaso de barro. É desprezado o barro, o corpo acaba por sofrer; Madiã é interpretada como “do juízo” ou “iniquidade”, isto é, o diabo que, pelo juízo de Deus, já é condenado, é derrotado e a sua iniquidade arrasada. E é isso que diz o profeta Isaías: “Os de estatura alta”, isto é, os demônios “serão cortados” e “os poderosos”, isto é, os homens orgulhosos “serão humilhados” e “o centro da selva”, isto é, a ganância das coisas materiais “será destruída pelo ferro” do temor de Deus; “e o Líbano”, isto é, o esplendor do luxo mundano “com os seus altos cedros”, isto é, as nulidades, os enganos e as aparências, “cairá”. Atenção! A satisfação, a penitência consiste em três coisas: • na oração, naquilo que diz respeito a Deus, • na esmola, no que diz respeito ao próximo, • no jejum, no que diz respeito a si mesmos. E tudo isso para que a carne que, pelo prazer, conduziu ao pecado, pela expiação conduza ao perdão. E isso digne-se conceder-nos Aquele que é bendito nos séculos. Amém.

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(Sermões, vol. III, pg. 139ss) Tradução: frei Geraldo Monteiro, OFM Conv.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Quaresma

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Tentação de Jesus - Gustave Doré

 

124. A Quaresma é tempo que precede e predispõe à celebração da Páscoa. Tempo de escuta da Palavra de Deus e de conversão, de preparação e de memória do batismo, de reconciliação com Deus e com os irmãos, de recorrer com mais freqüência às “armas da penitência cristã”: [29] a oração, o jejum, a esmola (cf. Mt 6, 1-6.16-18).

No âmbito da piedade popular o sentido mistérico da Quaresma não é facilmente percebido e não são colhidos alguns de seus grandes valores e temas, tais como a relação entre o “sacramento dos quarenta dias” e os sacramentos da iniciação cristã, como também o mistério do “êxodo” presente ao longo de todo o itinerário quaresmal. Segundo uma constante da piedade popular, levada a se deter nos mistérios da humanidade de Cristo, na Quaresma os fiéis concentram a sua atenção na Paixão e Morte do Senhor.

125. O início dos quarenta dias de penitência, no Rito romano, é qualificado pelo austero símbolo das Cinzas, que caracteriza a Liturgia da Quarta-feira de Cinzas. Pertencente ao antigo ritual com que os pecadores convertidos se submetiam à penitência canônica, o gesto de se cobrir de cinzas tem o sentido de reconhecer a própria fragilidade e mortalidade, que necessita ser remida pela misericórdia de Deus. Longe de ser um gesto puramente exterior, a Igreja o conservou como símbolo da atitude do coração penitente que cada batizado é chamado a assumir no itinerário quaresmal. Os fiéis, que acorrem numerosos para receber as Cinzas, serão portanto ajudados a perceber o significado interior implicado nesse gesto, que abre à conversão e ao compromisso da renovação pascal.

Apesar da secularização da sociedade contemporânea, o povo cristão percebe claramente que durante a Quaresma é preciso orientar os ânimos para as realidades que verdadeiramente contam; que se exige empenho evangélico e coerência de vida, traduzida em boas obras, em formas de renúncia àquilo que é supérfluo e de luxo, em manifestações de solidariedade com os sofredores e os necessitados.

Os fiéis que freqüentam raramente os sacramentos da penitência e da Eucaristia também sabem, devido à longa tradição eclesial, que o tempo da Quaresma-Páscoa está em relação com o preceito da Igreja de confessar os próprios pecados graves ao menos uma vez por ano e de receber a Sana Comunhão ao menos uma vez ao ano, de preferência durante o tempo pascal. [30]

126. A diferença entre a concepção litúrgica e a visão popular da Quaresma não impede que o tempo dos “Quarenta dias” seja um espaço eficaz para uma fecunda interação entre Liturgia e piedade popular.

Um exemplo dessa interação está no fato de que a piedade popular privilegia alguns dias, algumas práticas de piedade, algumas atividades apostólicas e caritativas que a própria Liturgia prevê e recomenda. A prática do jejum, tão característica dede a antigüidade neste tampo litúrgico, é “prática” que liberta voluntariamente das necessidades da vida terrena para descobrir a necessidade da vida que vem do céu: “Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (cf. Dt 8, 3; Mt 4, 4; antífona da comunhão do I Domingo da Quaresma).

Notas:

[29] Missal Romano, Quarta-feira de Cinzas, Coleta.

[30] Cf. CIC, can. 989 e 920.

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Fonte: Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório Sobre a Piedade Popular e Liturgia - Princípios e orientações. Páginas: 112 a 114.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

A Infelicidade dos pecadores - Deus Pai fala à Santa Catarina de Sena

tristeza

Expliquei qual é a ilusão dos pecadores no seu desordenado temor e como sou um Deus imutável, livre da acepção de pessoas, unicamente atento ao desejo santo. Foi o que te revelei no simbolismo da árvore. Passo a falar dos que sofrem e dos que não sofrem ante os espinhos e dores que a terra produziu depois do pecado (original). Tendo-me ocupado da situação dos pecadores que se deixam iludir pela própria sensualidade, vou explicar-te em que sentido essas pessoas são feridas por tais espinhos.

Todos os que nascem e vivem neste mundo passam por fadigas corporais ou espirituais. Sim, também os meus servidores padecem nos seus corpos; mas em seus espíritos não, porque suas vontades estão identificadas com a minha. O que faz o homem sofrer é a vontade. Quanto aos pecadores, sofrem na alma e no corpo. Eles experimentam no mundo as primícias do Inferno, como os meus servidores já gozam a garantia do céu.

Sabes qual é a grande felicidade dos santos? É possuir a vontade satisfeita em todas as suas aspirações. Ao desejar-me, possuem-me, tendo deixado o peso do corpo que produzia a lei que luta contra o espírito. Na vida terrena, o corpo impedia o perfeito conhecimento da Verdade e minha visão face a face. Separando-se do corpo, a vontade dos bem-aventurados realiza-se: ao desejo de ver-me corresponde a visão, e com ela, a beatitude. Vendo, conhecem-me; conhecendo, amam-me; amando, saboreiam-me; saboreando, realizam-se quanto ao desejo de me ver e conhecer. Desejando, possuem; possuindo, desejam. Como disse (14.4), o sofrimento está distante do desejo e o fastio da saciedade. Como vês, meus servidores são felizes, especialmente na visão celeste. Ela satisfaz seus desejos, sacia suas vontades. Neste sentido afirmei (14.9) que a vida eterna consiste na posse das coisas que a vontade deseja, isto é, conhecer-me, ver-me.

Já a partir desta vida meus servidores gozam da eternidade, ao saborearem a causa de sua felicidade. E qual é tal causa? Respondo: é a certeza da minha presença em suas vidas, é o conhecimento da minha Verdade. Tal conhecimento se realiza na inteligência, que é o olho da alma; pupila de tal olho é a fé. Pela iluminação da fé, eles distinguem, conhecem e seguem a estrada-mensagem do Verbo encarnado. Sem a fé, ninguém reconhece tal estrada, à semelhança daquele que possuísse o olho, mas coberto por um pano. Sem a pupila deste olhar é a fé; nada verá quem cobrir sua inteligência com o pano da infelicidade, por causa do egoísmo. Tal pessoa terá a inteligência, mas não a luz para conhecer.

Portanto, tais pessoas vendo, conhecem; conhecendo, amam; amando, afogam e destroem a vontade própria; tendo-a destruído, revestem-se da minha vontade, a qual deseja unicamente a vossa santificação (1 Ts 4,3). Com isso, deixam o rio do pecado, sobem para a ponte, superam os espinhos (v. 14,8) que já não lhes machucam os pés do amor (v. 12.1). Já se conformaram à minha vontade. Neste sentido, como disse acima (14.9), meus servidores não padecem no espírito, mas somente no corpo. O querer sensível já morreu, ele que é a fonte de sofrimento e dor para o homem. Destruída essa “vontade” sensível, o sofrimento desaparece e meus servidores tudo passam a tolerar com respeito. Consideram como graça as dificuldades que permito, só desejam o que eu desejo. Quando deixo que os demônios os atormentem com tentações para provar suas virtudes, como expliquei antes (14.7), eles as superam com a intervenção da vontade, por mim fortalecida. Humilham-se, consideram-se indignos de sossego e merecedores de castigo. Vivem, pois, na alegria, sem sofrer. Nas perseguições e adversidades provenientes dos homens, na pobreza ou rebaixamento de posição social, na morte de filhos e pessoas amadas - espinhos produzidos pala terra depois do pecado de Adão - meus servidores tudo suportam com discernimento e fé. Confiam em mim, Bondade suprema, certos de que somente quero o bem e para o seu bem tudo permito com amor.

Após fixar o pensamento em mim, eles olham para sim mesmos e reconhecem os próprios defeitos; na fé, sabem que toda virtude será premiada e todo mal punido. Entendem que a menor culpa merece castigo eterno, porque atenta contra minha bondade infinita. Com gratidão, porque aceito de puni-los nesta vida passageira, dão reparação às suas culpas mediante a contrição interior. Obtêm méritos com a perfeita paciência. Tais esforços terão a paga de um prêmio sem medida.

Eles sabem que, devido à transitoriedade do tempo, são de pouca monta os sofrimentos desta vida. O tempo é como a ponta de uma agulha, nada mais. Acabado o tempo, também a dor cessa. Como vês, é passageira a dor. Pacientemente e sem prejuízo interior, esses homens superam os acontecimentos adversos. Seus corações estão livres do amor sensível e unidos a mim na caridade. Realmente, já possuem no mundo a garantia do céu: na água, não se molham, sobre espinhos não se ferem. Tendo-me conhecido, procuram o bem supremo onde de fato ele está, ou seja, no Verbo meu filho.

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Livro: O Diálogo - Santa Catarina de Sena
Paginas: 104 a 106
Impressão e acabamento: Paulus - 9° edição, 2005