A Bíblia ou Sagrada Escritura é a colecção de livros que, escritos sob inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor e como tais livros divinos e inspirados foram entregues à Igreja [1].
Portanto, se quisermos entender o que são os livros sagrados, o primeiro que há a ter em conta é que esses livros, ao contrário de todos os outros que existem no mundo, têm duas características próprias e exclusivas: a primeira é que são de origem divina, devido a uma acção peculiar que é a inspiração divina da Sagrada Escritura; a segunda é que a Bíblia foi entregue por Deus à Sua Igreja como um depósito sagrado e dom divino, que Ela há-de guardar, interpretar e expor aos homens para que estes, conhecendo e amando a Deus nesta vida, possam receber a bem-aventurança eterna.
Devemos ter diante dos olhos que a leitura da Sagrada Escritura, além de nos dar um conhecimento do que é Deus em Si mesmo, deve produzir em nós um aumento do amor de Deus e do próximo; mais ainda, pode afirmar-se que se não se consegue este aumento da caridade não se entendeu totalmente a Sagrada Escritura: “Todo aquele que conhecer que o fim da Lei é a caridade que procede de um coração puro, de uma consciência boa e de uma fé não fingida [2], preferindo todo o conhecimento da Escritura divina a outras coisas, dedique-se com confiança a expor os livros divinos. O que julga ter entendido as Escrituras divinas ou alguma parte delas e com esta inteligência não edifica o duplo amor de Deus e do próximo, ainda não as entendeu” [3].
Depois explicaremos mais detidamente essas duas características; agora queremos, como um passo prévio, expor algumas noções acerca da Revelação divina.
***
A Revelação Divina
Literalmente a palavra “revelação” significa tirar o véu que oculta algo. Na linguagem religiosa quer dizer a manifestação que Deus faz aos homens do Seu próprio ser e das verdades necessárias ou convenientes para a salvação. Deus dá-Se a conhecer ao homem de duas maneiras: uma é através das Suas criaturas, à maneira como um artista através da sua obra; este é o nosso conhecimento natural de Deus, descrito com grande força poética no Antigo Testamento no livro da Sabedoria: “Eram insensatos por natureza todos os homens que desconheciam Deus, e que, pelos bens visíveis, não chegaram a conhecer Aquele que é, nem, pela consideração das Suas obras, reconheceram o Artista. Pelo contrário, tomaram o fogo, ou o vento, ou o ar agitável, ou o circulo dos astros, ou a água impetuosa, ou os luzeiros dos céus, por deuses, governadores do mundo. Se, encantados pela beleza de tais coisas, as tomaram por deuses, deviam reconhecer quanto é melhor do que elas o seu Senhor, porque foi o criador da beleza que fez todas estas coisas. Se o que os impressionou foi a sua força e o seu poder, deviam compreender, por meio delas, que o seu criador é muito mais poderoso. Com efeito, pela grandeza e beleza das criaturas pode-se, por analogia, chegar ao conhecimento do seu Autor” [4]. Isto é o que o Apóstolo São Paulo recordava aos Romanos, quando escrevia que as perfeições invisíveis de Deus, em concreto, o Seu eterno poder e a Sua divindade, se tornam visíveis à inteligência através das coisas criadas [5].
Mas Deus não Se contentou com esse conhecimento natural: Ele próprio deu-Se a conhecer de uma maneira directa: “Tendo Deus falado outrora aos nossos pais, muitas vezes e de muitas maneiras, pelos Profetas, agora falou-nos nestes últimos tempos pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo e por Quem igualmente criou o mundo” [6]. Esta acção de Deus é a Revelação sobrenatural ou divina.
Com uma sábia pedagogia Deus escolheu o povo de Israel para Se manifestar gradualmente, por meio dos Profetas, no Antigo Testamento. Esta Revelação tem a sua plenitude em Jesus Cristo, o Filho de Deus feito homem, que nos comunicou toda a verdade. “Deus dispôs amorosamente que permanecesse íntegro e fosse transmitido a todas as gerações tudo quanto tinha revelado para a salvação de todos os povos. Por isso, Cristo Senhor, em Quem toda a revelação do Deus altíssimo se consuma, mandou aos Apóstolos que pregassem a todos, como fonte da toda a verdade salutar e de toda a disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e por Ele cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando-lhes assim os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade, tanto pelos Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições, transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, intimidade e obras de Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo, como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a inspiração do mesmo Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação” [7].
Assim na Igreja, junto à Sagrada Escritura, existe a Sagrada Tradição. Ambas constituem o depósito da Revelação de Deus relativa à fé e aos costumes, entregue por Cristo aos Apóstolos e por estes aos seus sucessores até chegar a nós.
Desta forma a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem o meio pelo qual nos chega a Revelação salvadora de Deus: “A Sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim” [8].
Graças à Tradição, a Igreja conhece o cânon dos livros sagrados e compreende-os cada vez com mais profundidade. Por esta razão, a Sagrada Escritura não pode ser compreendida sem a Sagrada Tradição.
Esta Sagrada Tradição está contida principalmente nos ensinamentos do Magistério Universal da Igreja, nos Escritos dos Santos Padres, e nas palavras e usos da Sagrada Liturgia.
Tanto a Tradição como a Escritura foram confiadas à Igreja e, dentro dela só ao Magistério compete interpretá-las autenticamente e pregá-las com autoridade. E assim, ambas devem ser recebidas e interpretadas com o mesmo espírito de devoção [9].
***
A Inspiração Divina da Bíblia
Como actua essa acção divina da inspiração sobre os autores humanos dos Livros Sagrados?
A inspiração divina ilustra a sua inteligência para que possam conceber com rectidão tudo aquilo e só aquilo que Deus quer que escrevam; é também uma moção infalível, ainda que sem menoscabo da liberdade do escritor sagrado, que move a vontade deste para escrever fielmente o que concebeu na sua inteligência; por último consiste também numa ajuda eficaz para que o hagiógrafo encontre a linguagem e os modos apropriados para exprimir aptamente e com infalível verdade tudo o que concebeu e quis escrever [10].
Deste modo Deus é o autor principal da Sagrada Escritura, e os escritores sagrados (hagiógrafos) também são verdadeiros autores, ainda que subordinados, à maneira de instrumento inteligente e livre, nas mãos de Deus [11].
De acordo com isto, o livro inspirado é o fruto de uma acção de Deus e do hagiógrafo, de modo que todos os conceitos e todas as palavras do texto sagrado se devem simultaneamente a Deus e ao Seu instrumento, o hagiógrafo. Nada há na Bíblia, pois, que não esteja inspirado por Deus.
***
Notas:
[1]- Cfr Dei Filius. Cap. 2.
[2]- Cfr 1 Tim 1,5
[3]- De doctrina christiana, 1,36,40; 1,40,44
[4] Sap 13, 1-5
[5] Cfr Rom 1,20
[6] Heb 1, 1-2
[7] Dei Verbum, n. 7.
[8] Dei Verbum, n. 9.
[9] Cfr De libris sacris.
[10] Providentissimus Deus.
[11] Cfr Ibid. e Dei Verbum, n. 11.
-Dados Gerais-
Bíblia Sagrada
Anotada pela Faculdade de Teologia da Universidade de Navarra
Santos Evangelhos
Reimpressão corrigida
Tradução portuguesa das Introduções e notas de comentário de José A. Marques
Com a colaboração de Augusto Ascenso Pascoal e Pio Gonçalo Alves de Sousa
EDIÇÕES THEOLOGICA BRAGA - 1994
Título: Introdução geral à Bíblia
Páginas: 25-26;26-28;28-29
Nenhum comentário:
Postar um comentário