Igreja santa e pecadora? (Pe. Penido)
Uma das causas comuns de apostasia [da fé] é o horror provocado pelos desfalecimentos humanos no seio da Igreja. A religião parece fonte de imoralidade, ou, pelo menos, não corresponder, na prática, ao que ensina em teoria.
E se o escândalo provoca apostasias, maior ainda o número de conversões que ele faz abortar: “Eu, agregar-me aos católicos? Por que, se eles não valem mais do que os outros - muitos deles até valem menos? Eu, ajoelhar-me aos pés de um padre, pecador ele também, talvez mais do que eu?” Tanto mais ferinas as críticas quanto maiores as pretensões da Igreja: ela se diz divina, santa, imaculada? Pois mostre-nos o que vai de tudo isso na vida cotidiana!
Escândalo ilógico, digamo-lo imediatamente. Jamais foi prometido por Cristo que a graça supriria o esforço pessoal. Os talentos que o Mestre nos dá, ele exige que os façamos frutificar; não se substituirá jamais a nosso livre arbítrio.
Deveria até confirmar a fé, o fato de que uma sociedade composta de homens fracos, falíveis, sujeitos às mesmas paixões que os demais, não haja todavia descambado na mais absoluta corrupção, mas antes mantenha rígidos os princípios de moral puríssima e os pratique, em que pesem os numerosos e indisfarçáveis desfalecimentos individuais.
A Igreja produziu até um tipo novo, original, de homem: o Santo. Tão novo, tão original que Bergson se abalançou a atribuir ao Santo uma essência diversa da nossa. Porém somos assim feitos que menos nos impressionam as virtudes do que os desfalecimentos. E por isso vemos tantos e tantos abandonarem a fé, porque encontraram um padre cúpido ou devasso, ou simplesmente malcriado; porque tal carola não passa de grandíssimo patife; porque tal senhora misseira, e até beata, é a pior língua da localidade.
Em nossa época este escândalo revestiu forma peculiar; apresenta-se corno reivindicação de justiça social. Embora os Papas hajam condenado não apenas o comunismo senão ainda os abusos do capitalismo, é infelizmente verdade que aquele que não se contenta de louvores teóricos às encíclicas, mas procura aplicá-las na prática, incorre muitas vezes na ira dos chamados bem-pensantes que lhe assacam as pechas de socialista, comunista, etc. Donde ser o catolicismo acusado de querer perpetuar as injustiças sociais, de ser o derradeiro baluarte do capitalismo burguês.
Apostasias ilógicas, repetimos, pois não distinguem entre a mensagens divina que merece nossa crença e seus portadores humanos, talvez menos dignos. Por ser portador desta mensagem, o mau padre merece ainda ser ouvido e obedecido, embora não faça o que prega. Porventura recusaríeis precioso tesouro, sob pretexto que vos é trazido por um homem esfarrapado e imundo? pergunta Catarina de Sena. Nem deixa de ser verdadeira a religião porque muitos dos seus adeptos não a praticam. Tão medíocre a humanidade, apesar da religião, que seria sem religião?
Ademais, com suma injustiça olvidaríamos o que de sublime houve e há na Igreja: aquela plêiade de mártires, de confessores, de virgens, que nos causa justo orgulho; a multiplicidade de obras e instituições; as miríades de almas tiradas do lodo; os incontáveis atos de bondade, de misericórdia, de justiça; as inúmeras tentações vencidas. Quantos e quantos atestam que na religião e nela só, encontram força para não resvalar, para cumprir o dever a todo custo? Além dos grandes santos, há os incontáveis “pequenos” santos, que vivem de cotidiano heroísmo cristão.
Na Encíclica “Mit brennender Sorge”, o Papa Pio XI fez valer uma outra consideração, ao aludir à exploração pelos nazistas, dos escândalos da Igreja:
“A divina missão que a Igreja cumpre entre os homens e deve cumprir por meio de homens, pode ser dolorosamente obscurecida pelo que de humano, talvez de demasiadamente humano, desponta por vezes qual cizânia entre o trigo do reino de Deus. Quem conhece a frase do Salvador acerca dos escândalos e dos que os dão, sabe como a Igreja e cada indivíduo deve julgar sobre o que foi e é pecado. Todavia, quem, fundando-se sobre esses lamentáveis contrastes entre fé e vida, palavra e ação, atitude externa e sentir interior de alguns ou mesmo de muitos, esquece ou passa sob silêncio o imenso cabedal de esforço genuíno em prol da virtude, o espírito de sacrifício, o amor fraterno, o heroísmo de santidade de tantos membros da Igreja, este manifesta injusta e reprovável cegueira”.
De fato, maior direito nos assistira de gemer sobre a inépcia de alguns hierarcas e a mediocridade da maioria dos católicos, se começássemos por gemer sinceramente sobre nossa própria inépcia e mediocridade, muito maiores ainda…
Todavia, não se nos aquieta inteiramente o espírito. Afigura-se-nos a Igreja qual realidade híbrida, plasmada de crimes hediondos e de virtudes inigualáveis - e não já, como afirma o Apóstolo: “Sem mácula, sem ruga, mas santa e irrepreensível”.
Como resolver a antinomia?
Os membros pecadores da Igreja.
Uma primeira resposta - tão fácil quanto errônea - consiste em afirmar que a Igreja só compreende os justos. Por conseguinte, a massa de pecadores que encontramos na cristandade faz tão pouco parte da Igreja quanto os apóstatas ou os pagãos endurecidos.
A Santa Igreja é aquele puro ser de glória que contemplava o Vidente de Patmos. E por isso mesmo se esconde a nossos olhos de carne.
Tal foi, no século IV, a solução dos Donatistas; na Idade Média, dos Valdenses e dos Hussitas; nos tempos modernos de Lutero, Calvino, Quesnel e do Sínodo de Pistóia. — No fundo, esta opinião identifica Igreja militante e Igreja triunfante.
Porém, como sabiamente adverte Leão XIII, quando inquirimos da natureza da Igreja, não nos devemos perder em devaneios sobre o que poderia ter Cristo feito, senão procurar o que ele de fato quis fazer, e que fez na realidade. Ora, as próprias palavras de Jesus nos revelam o mistério da presença de pecadores dentro do Corpo Místico.
Na alegoria da videira, Jesus nos diz, logo a princípio: “Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o lavrador; toda a vara em mim que não dá fruto, ele a tira, e poda aquela que dá fruto para que dê mais fruto” (Jo 15, 1-2). Temos aqui claramente indicado que tanto o justo como o pecador estão no Corpo Místico de Cristo. Em condições bem diversas, por certo. Um como membro fecundo, destinado à fecundidade maior; outro como membro estéril, destinado a ser cortado, a secar, e mais tarde a ser lançado ao fogo (15, 6). Só se corta fora o que faz parte de um conjunto, não o que lhe não pertence.
(PENIDO, Pe. Dr. Maurílio Teixeira-Leite: “O Mistério da Igreja”, Editora Vozes, Petrópolis, 2 ed., 1956, pp.243-245).
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Fonte: http://salterrae.org/2008/08/31/igreja-santa-e-pecadora-pe-penido/
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